“Dirceu foi condenado sem provas, diz Ives Gandra
O ex-ministro José Dirceu foi condenado sem provas. A teoria do domínio do fato foi adotada de forma inédita pelo STF (Supremo Tribunal Federal) para condená-lo.
Sua adoção traz uma insegurança jurídica ‘monumental’: a partir de agora, mesmo um inocente pode ser condenado com base apenas em presunções e indícios.
Quem diz isso não é um petista fiel ao principal réu do mensalão. E sim o jurista Ives Gandra Martins, 78 (...)
Houve uma mudança nesse julgamento?
O domínio do fato é novidade absoluta no Supremo. Nunca houve essa teoria. Foi inventada, tiraram de um autor alemão, mas também na Alemanha ela não é aplicada. E foi com base nela que condenaram José Dirceu como chefe de quadrilha [do mensalão]. Aliás, pela teoria do domínio do fato, o maior beneficiário era o presidente Lula, o que vale dizer que se trouxe a teoria pela metade.
O domínio do fato e o ‘in dubio pro reo’ são excludentes?
Não há possibilidade de convivência. Se eu tiver a prova material do crime, eu não preciso da teoria do domínio do fato [para condenar] (...)
O ‘in dubio pro reo’ não serviu historicamente para justificar a impunidade?
Facilita a impunidade se você não conseguir provar, indiscutivelmente. O Ministério Público e a polícia têm que ter solidez na acusação. É mais difícil. Mas eles têm instrumentos para isso. Agora, num regime democrático, evita muitas injustiças diante do poder. A Constituição assegura a ampla defesa - ampla é adjetivo de uma densidade impressionante. Todos pensam que o processo penal é a defesa da sociedade. Não. Ele objetiva fundamentalmente a defesa do acusado.”
Deixando o debate sobre o caso específico de lado, a entrevista toca em um dos pontos mais delicados do direito: a presunção de inocência.
No Brasil, nos acostumamos com o chavão de que alguém é inocente até que se prove em contrário sem pensarmos com cuidado no que isso significa. Para um país recém saído de décadas de autoritarismo, o adágio funciona como um bálsamo de democracia. Nos protege das arbitrariedades dos governantes. É essencial.
A filosofia pode trás da presunção de inocência é que cabe a quem acusa provar que o acusado é culpado. O acusado não tem obrigação de mostrar que é inocente. Afinal, provar sua própria inocência é quase sempre impossível. Ou você guardou o recibo do pão que estava comprando às 20h do dia 8 de outubro de 2011 para provar que estava na padaria e não em outro local cometendo um delito naquele momento?
Mas, para que uma democracia funcione, a presunção de inocência não pode ser usado como uma panaceia para a impunidade.
Apenas para ficarmos em dois exemplos dos limites do ‘inocente até que se prove em contrário’ imposto por dois sistemas jurídicos normalmente considerados mais democráticos e justos que o nosso:
Nos EUA, depois da primeira condenação, a presunção de inocência desaparece. Afinal, o réu já foi condenado. Se ele resolve recorrer de sua condenação, ele quase sempre o fará já cumprindo pena. A presunção é apena isso: uma presunção, e não uma certeza. Depois de condenado, ainda que haja a possibilidade de recurso, a presunção deixa de existir. No Brasil, ao contrário, tendemos a tentar espichar tal presunção de inocência ao menos até uma decisão definitiva da segunda instância. Às vezes, até mais adiante.
Na Inglaterra, a presunção também desaparece para o suspeito preso com acessórios do crime ou no local do crime que não explica na primeira oportunidade à polícia por que está com aquele material ou naquele local. O júri pode inferir sua culpa. Quando isso ocorre, os papéis se invertem no julgamento: cabe ao réu demonstrar sua inocência em relação à posse do material ou presença no local porque ele não foi claro desde o início por que estava com aqueles objetos ou naquele local.
A diferença parece sútil, mas é importante: não é mais a acusação quem precisa provar que ele estava naquele local cometendo o crime: como o réu não se explicou na primeira oportunidade, ele terá agora que demonstrar que não estava no local cometendo o crime. O ônus se inverte.
Também na Inglaterra, se ele não apresenta seu álibi tão logo é questionado pela polícia, se ele quiser utilizar tal álibi no julgamento como parte de sua defesa, os jurados poderão inferir que ele está mentindo. Caberá ao réu provar que não está mentindo, ou seja, que não inventou a desculpa depois de ter sido questionado pela polícia. Novamente, o ônus se inverte.
Esses exemplos mostram como sistemas jurídicos precisam tomar cuidado para não transformarem um dos mecanismos mais importantes de proteção das sociedades democráticas justamente em seu oposto: um mecanismo de impunidade de criminosos, porque os dois extremos geram exatamente os mesmo resultados: o descrédito da Justiça e o consequente descrédito das instituições democráticas.